2 de novembro de 2006

Contando um conto...


Gato Preto Sobre a Neve 

 Cristina Mockaitis

Estavam voltando da casa da mãe dele. A despeito da neve e do frio, o carro estava quentinho e acolhedor. Eles conversavam. Trivilidades. Ela respondia em inglês a tudo que ele falava no idioma dele enquanto pensava em português a respeito de outra coisa. Decorridos quase dois anos vivendo na pequena cidade do interior daquele outro país, a paisagem era agora familiar.
A brancura dos telhados, árvores e ruas lhe dava uma sensação de monotonia apesar da beleza. O carro deslizava macio nas ruas cobertas de neve e se aproximavam do seu lago preferido, agora coberto de gelo. Tão bonito e tão gelado, como o coração dele. Como podia ele ser tão parecido com o lago? pensava ela. Estranho compará-lo ao lago... ambos exerciam atração sobre ela. Ambos eram convidativos e silenciosos. O lago guarda seus segredos na profundeza assim como ele, pensou ela.
Olhava distraidamente para o lago quando avistou o enorme gato preto caminhando vagarosamente sobre a neve. Que contraste... uma magnífica mancha negra, cheia de vida e gingando o corpo, caminhando como se fosse natural. Mas era natural, pensou... gatos e cães caminham sobre a neve todos os dias. E aquela cena aparentemente banal repentinamente ressoou em sua mente como uma provocação para suas divagações pessoais. Tudo veio à sua mente tão rápido que nem pôde ser pensado com palavras, apenas sensações. Toda sua vida ali era como um gato preto caminhando sobre a neve. Tão explícito... o preto e o branco. Tão opostos , tão complementares e tão óbvios. Sua vida era assim, um imenso e óbvio contraste entre a branca frieza do coração dele e seus negros e cálidos sentimentos. Que segredos mais guardava ele sob a capa de gelo, além daqueles que ela já tinha vislumbrado? Ele continuava a falar. Ela já não escutava mais, estava mergulhada na sua própria profundeza. Ela era tão óbvia, transparente, sincera e ele se aproveitava disso. Ser óbvia e transparente era sua fraqueza enquanto manter tudo sob a superfície era a força dele.
_ Alô!
_ O que há com você? Você nunca presta atenção ao que eu digo.
Ele parecia aborrecido e ela voltou à tona de seus pensamentos.
_ Desculpe, estava vendo como é lindo um gato preto caminhando sobre a neve.
Ele continuou a falar e ela voltou a mergulhar na imagem do gato.
O carro parou. Entraram em casa, mas os pensamentos dela ainda estavam cem metros atrás.
Como poderia um gato preto deixar de ser tão óbvio quando caminha sobre a neve? Como poderia ela se ocultar dele? Ele iria sorver tudo sem dar nada em troca.

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